segunda-feira, 4 de maio de 2009

Blade Runner 1982 - The Final Cut 1992


Ano: 1982 - Original / 1992 - The Final Cut

Tempo de Duração: 110

Direção: Ridley Scott

Trilha Sonora: Vangelis

Harrison Ford - Deckard
Rutger Hauer - Roy Batty
Sean Young - Rachael
Edward James Olmos - Gaff
Daryl Hannah - Pris
William Sanderson - J.F. Sebastian


NOSSA NOTA: 10 Tak


Excepcional no filme: Cenário, Trilha Sonora


Frase Marcante: "All those moments will be lost in time like tears in the rain" - Roy


Análise Crítica do filme Blade Runner, de Ridley Scott.

por Mr. Raccoon

Blade Runner, baseado no livro de Philip K. Dick “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, foi um filme mal entendido na época do seu lançamento. Poucas pessoas puderam compreender o verdadeiro significado e objetivo dessa obra-prima, que é, como a maioria das ficções científicas, criticar o comportamento e os valores humanos e nos fazer refletir sobre nossa existência, o fazendo de forma subjetiva. A Guerra Fria estava em alta na época em que o filme foi feito, e o rumor de guerra nuclear estava começando a ganhar força. Então os cineastas se aproveitaram disso e fizeram filmes que retratavam a situação do planeta no futuro, muitas vezes em estado caótico, se referindo a possível dizimação da vida terrestre.

Logo no início somos apresentados a situação dos Replicantes, andróides extremamente parecidos com os humanos, mas que foram feitos para servir nas colônias espaciais, “uma terra dourada de oportunidades e aventuras”.

Então em seguida temos a visão panorâmica da parte mais rica da futura cidade de Los Angeles. Interessante a escolha da cidade. Por que não New York ou Boston? Pois a cidade mais ensolarada, com natureza e tempo bom dos EUA é LA. Ela é perfeita para retratar como a natureza foi degradada, pois se essa cidade está assim, imaginem então as outras já deterioradas pelo homem.

Continuando, nos é mostrada a imagem da cidade, com indústrias e construções grandes – a Tyrell Corporation – e então, refletindo explosões, um olho azul. Pela cor, é aceitável dizer que ele pertence ao criador, Tyrell, mas, claro, há outros fatores que nos indicam isso. Temos na cultura maçônica algo que é o “olho que tudo vê”, localizado em cima de uma pirâmide. A Tyrell Corp. tem um formato de pirâmide sem a parte de cima, mas se imaginarmos o olho ali, temos a figura completa. Na mitologia egípcia, o deus-sol Hórus possui um olho bastante retratado: o esquerdo. Para os egípcios, ele significava poder e proteção, e o esquerdo em especial demonstrava o lado emocional. O direito, completando, significava o racional. Não é possível identificar no filme de que lado está o olho, mas isso não importa para aplicarmos o significado geral do órgão: a superioridade divina com a proteção e poder juntos.



Na outra cena, um Blade Runner, Holden, faz o teste Voight-Kampff em Leon Kowalski, um dos Replicantes Nexus 6 que fugiram. Este teste consiste na observação da dilatação involuntária da íris que demonstra sentimentos e emoções. No livro original Philip adiciona que o VK detecta também pequenas partículas emitidas pelo ser humano e que dependem das nossas emoções. O teste começa quando é apresentada a Leon uma metáfora em que ele está em um deserto e vira uma tartaruga de barriga pra cima. Por ser um ser racional ele não consegue imaginar a situação, pois deseja saber como ele foi parar lá, porque e outros detalhes. Há certas evidências durante o filme que mostram proximidade a Descartes, filósofo francês. Descartes dizia que o corpo humano é uma máquina. O que nos tornava mais emotivos e suscetíveis a emoções era nossa alma. Como os andróides não têm alma, são apenas máquinas, que não possuem o privilégio de figurarem uma hipótese, e precisam que toda situação “seja expressa em termos de quantidades precisas e matematicamente definidas”[1]. E isso claramente irrita Leon, pois ele não consegue entender o que Holden diz. Ao observarmos a trilha sonora nesta parte, podemos ouvir seus batimentos cardíacos acelerando, o que indica sua tensão. Ele acaba assassinando o Blade Runner e fugindo.

Ao vermos a parte pobre da cidade, a parte baixa, temos a visão de uma distopia noir, vemos prédios e bastante luz neon, presentes até nos cabos de guarda-chuvas - sempre necessários. Vemos letreiros da Atari (que na época em que o filme foi feito era uma tecnologia avançada), PanAm e outras marcas, e propagandas em vídeo da Coca-Cola e de algum produto oriental, que demonstra como os EUA virou uma mistura de culturas tão grande que é comum ver coisas escritas em outras línguas que não inglês. É uma terra deixada à deriva. Em uma cena de perseguição, vemos monges, judeus e ainda podemos ouvir música escocesa. A cidade foi tomada por comerciantes, capitalistas. Os humanos tinham ido para colônias espaciais, pelo menos parte deles, e quem não conseguiu ir ficou pela América mesmo. Na propaganda dessas colônias o locutor diz que elas são para os americanos. Talvez outros países ainda não tenham tecnologia suficiente, e por isso não puderam ir. Mas há outra interpretação: será que Dick e Ridley não quiseram fazer uma crítica à sociedade americana? Quando conhecemos J. F. Sebastian, sabemos que ele não passou no exame médico para sair da Terra. Deduz-se, então, que eles só querem pessoas perfeitas lá. Ao não levarem estrangeiros, mostraria isso um certo preconceito e sentimento de superioridade dos americanos?

Outro ponto a ressaltar, que pode ser considerado exagero por alguns, é que a propaganda das colônias espaciais diz: “uma terra DOURADA”. No poema de William Blake, “America: A Prophecy”, que veremos mais a frente que possui mais relações com o filme, a América vive de forma caótica, mas do outro lado do mar existe um terra DOURADA onde as pessoas podem viver de forma melhor. As colônias seriam essa terra, então.



Quando somo apresentados a Rick Deckard ele está para ser levado por Gaff para a delegacia. Vemos então mais uma referência a Descartes: a semelhança de nome entre Deckard e Descartes. Ao chegar à delegacia, Bryant o pede para voltar a ser um Blade Runner. Deckard recusa. Gaff neste instante faz um origami em formato de galinha, representando a covardia do antigo caçador de andróides. Deckard aceita o serviço, como se tivesse se sentido desafiado por Gaff.

Ao entrar na sala de recepção da Tyrell Corp., uma coruja aparece. Na mitologia grega, essa ave representa a sabedoria. Já que ela pertencia a Tyrell, podemos vê-lo como o sábio. Interessante observar que ela é artificial, pois o homem já havia acabado com toda a natureza – pelo menos daquele lugar. Quando vemos a paisagem na grande janela do cômodo, podemos compará-la a paisagens egípcias. Um tom alaranjado, as construções piramidais, mais uma referência ao Egito.

Acredito que Gaff seja o personagem mais interessante junto com Roy, o Replicante líder. Ele não fala muito, mas demonstra suas emoções através de origamis. Como já mencionei, houve a galinha, e depois quando ele e Deckard estão na casa de um andróide, Gaff faz um palito com um homem com uma ereção, representando que agora Deck já está mais confiante, ou até se orgulhando demais de si mesmo.

Os olhos são bastante realçados neste filme. Além de outras ocasiões que já mencionei, eles aparecem também quando Roy e Leon visitam o fazedor de olhos. Roy tem uma aparência ilustre, de alguém iluminado, glorioso. Podemos fazer uma comparação com Lúcifer, o anjo da luz. A primeira coisa que Roy fala para o velho cientista é: “Em chamas, os anjos caíram, trovões ecoando ao redor de suas praias, queimando com o fogo de Orc.” Essa frase foi retirada do poema America: A Prophecy, de William Blake. Mas qual seria o porquê de Roy ter recitado essa frase? No original – quero dizer, no poema – o verso poderia ser traduzido como: Em chamas – ou enraivecidos – os anjos caíram, e ao caírem trovões ecoaram nas praias: indignados queimando no fogo de Orc. Por ser um texto complexo de se traduzir, com várias interpretações, não é possível dizer exatamente o que Roy quis dizer, mas podemos supor.

Quando o Replicante líder diz que os anjos caíram, ele poderia estar se referindo aos Nexus 6, que estavam no espaço e vieram para a Terra. Isso significaria que ele seria, por um lado, como Lúcifer. E a frase “queimando com o fogo de Orc” poderia representar que agora eles estavam na parte degradada da Terra, junto com os piores humanos. Para ficar mais fácil de entender, fiz uma leitura do poema inteiro para estudar quem seria Orc: ele era um monstro horrível, que chegava a assustar os olhos, e que vivia na Terra. Até mesmo na mitologia germânica, ele era usado para representar a maldade, que combatia o bem. Ele queimava seus inimigos ou os fazia de prisioneiros. No poema, diz-se que ele desrespeitava a lei de Deus, e observava como a Terra estava em sombras e deteriorada. O modo como a América é apresentada por Blake assemelha-se à vista em Blade Runner: Orc diz que os humanos vivem em trevas, e a pureza maior que alguém pode achar se encontra em uma prostituta, ou seja, não há honestidade e integridade. Os mandamentos de Deus, obviamente, foram esquecidos, pelo motivo de eles irem contra as maiores fontes de prazer. Então, quando Roy recitou este verso, ele quis dizer que agora ele estava com a podridão do mundo e queimando no fogo de Orc, ou seja, sendo condenado por ele. E ele poderia estar fazendo um trocadilho ao dizer a expressão “em chamas” e estar em um lugar com uma temperatura abaixo de zero. Não digo que foi de propósito, mas foi o melhor momento para recitar o verso.

É importante mencionar as fotografias do filme. Tyrell diz a Deckard que os Replicantes têm uma obsessão: memórias, ou as fotos. É assim que Rachel tenta provar a Rick que ela não é uma andróide, mostrando fotos de sua infância. E Deckard, em cima de seu piano, também possui várias fotos, desde muito antigas até mais recentes. Como os andróides têm suas memórias implantadas antes de “nascer”, o passado deve ser algo obscuro para eles, pois os mesmos provavelmente lembram-se de tudo como nós, humanos, nos lembramos de um sonho, ou seja, de forma não clara. Essa é uma dica para depois analisarmos as razões para acreditar que ele também seja um Replicante.

É necessário também ressaltar a magnitude da trilha sonora do filme. Vangelis Papathanassiou fez um trabalho incrível. Ele consegue passar características do cenário ou sentimentos da personagem apenas com a música. Por exemplo, colocando sons que lembram batimentos cardíacos acelerados temos a impressão de nervosismo, como já disse, ou então como quando Deckard visita Zhora, a Replicante que dança com a cobra, e podemos ouvir uma música em um estilo que combina com a cobra e a dança.



A natureza claramente estava extinta em LA, como é possível observar nas cenas, então no momento que Rick pergunta a Zhora se a cobra com que ela dançava era real, ela diz que era óbvio que não, pois a de verdade seria muito cara. Porém, no início do filme, Rachel diz que a coruja artificial era extremamente cara. Então se chega à conclusão de que é muito comum a engenharia genética (inclusive porque até a idosa japonesa parece conhecer sobre o assunto), e se pode encontrar espécimes falsos baratos. Mas também há os animais com uma qualidade excepcional, que seria os que foram feitos por Tyrell.

E eu não poderia deixar de citar a cena em que a tal Zhora morre. Em minha opinião foi uma das melhores mortes no cinema, pois é possível realmente se envolver na situação. Primeiramente graças à trilha sonora, em que se pode mais uma vez ouvir um coração batendo, muito provavelmente o da Replicante, já que ele para vai parando até o fim, e também pela cena ter sido passada em slow motion, o que realmente faz a diferença. E ainda por cima todos aqueles manequins-bonecos pelo qual Zhora passa que realçam mais a idéia de bonecos/andróides. Mas o que poderia explicar o fato de durante a morte a andróide ir quebrando vidros transparentes e ainda por cima estar vestindo uma roupa do mesmo jeito? Há quem pense que não significa nada, e pode ser que não mesmo, mas também poderíamos considerar algumas idéias. A primeira seria que toda essa transparência demonstraria que ela foi descoberta, então agora ela é vista claramente, do jeito que ela realmente é – uma máquina -; ou então apenas o último vidro significaria alguma coisa – mesmo que só um detalhe -, que seria ela terminar morrendo na neve. A neve cai no inverno, que acontece no último mês do ano (no hemisfério Norte) e representa o fim. Neste caso, a morte. Mas claro, seria só uma estética pouco significativa.

Rachel, a Replicante “do Bem”, passa a viver com um conflito interno a partir do momento em que conhece Deckard e descobre que ela não é humana. Ela poderia se revoltar contra aquele que a criou e a enganou, mas Rachel acaba decidindo continuar do lado dos homo sapiens. Afinal, ela mata seu “irmão” Leon para salvar Deckard. Ela, no fundo, quer tanto ser humana que está disposta a se enganar. Assim como Deckard. Ele desconfia que seja um andróide, mas está disposto a fazer de tudo para provar a si mesmo o contrário. Com certeza uma das cenas de amor mais bizarras e interessantes já feitas foi a de Rick com Rachel. Já vi pessoas que dizem que Deckard estava simbolizando o machismo e a opressão contra as mulheres quando ele a força a fingir que gosta dele. Mas ele não a força. Ela realmente gosta dele, e isso nos é apresentado claramente, mas ela não queria admitir pois achava que não podia confiar nos seus sentimentos. Sabemos que com o tempo os Replicantes podem desenvolver suas próprias emoções, mas Rachel parece ainda não ter chegado plenamente a esse ponto. E se chegou não sabe se ele é de verdade. Tanto ela quanto Deckard demonstram estar se forçando a ter sentimentos fortes de verdade: “Diga: eu te quero”, Rick diz a ela. Eles precisam se convencer de que aquilo é real.

E do mesmo jeito Roy e Pris, os Replicantes, parecem fingir um pouco suas emoções. Quando eles se encontram na casa de J. F. Sebastian os dois se dão um beijo como se não soubessem como o fazer. E ao dar a noticia de que Leon está morto, Roy faz uma cara realmente fingida de choro, se esforçando para se sentir mal pela morte do amigo.



Em Blade Runner há muitos detalhes simbólicos: os origamis de Gaff, a morte de Zhora, entre outros. Na casa de Sebastian encontramos mais um deles. Quando J. F. está dormindo e Pris se aproxima dele, um de seus bonecos está acordado e visivelmente tenso. O que seu nariz lembra, porém, é o que chama atenção, e nos retoma a outra figura: a de uma ereção do órgão sexual masculino. Ele é um símbolo fálico para o sentimento Eros que Sebastian sente pela andróide, que infelizmente não é recíproco.

Como foi observado, os olhos têm uma posição especial nesse filme. Pris, na casa de Sebastian, se pinta com uma tinta branca e contorna seus olhos de preto, assemelhando-se a um guaxinim. Esse animal é o símbolo do enganador em mais de uma cultura, como na Abenaki, costume dos índios norte-americanos Azeban. Na mitologia deles o guaxinim engana os outros animais, simbolizando que ele é mais esperto, pensando também no fato de ele estar acordado à noite enquanto os outros dormem. E este é um bom momento para analisar os Replicantes em específico. Eles simbolizam os filósofos em um mundo caótico. Além desse rápido exemplo do guaxinim, esses Replicantes são os únicos da época a se interessarem em saber de onde eles vêm, quem os criou e quererem tirar satisfação com ele, o Criador. Eles são os únicos acordados para a realidade do mundo, e riem dos humanos que ainda estão dormindo. Apenas os andróides querem respostas.

Além da menção a Descartes já mencionada acima, ainda temos mais algumas. “Eu penso, Sebastian, logo existo”. Pris parafraseia o filósofo francês em um diálogo com J. F., em que Roy se sente ofendido por ser confundido com uma máquina. Essa citação põe à prova a filosofia cartesiana que defende que se alguém é capaz de pensar, ele pode ter a certeza de existir. Portanto, se Pris pensa, ela é real e existe, e não é apenas um computador. Descartes dizia que nós, humanos, somos máquinas com alma, res cogitans. A alma, segundo Platão, se divide em três elementos: racional, espírito ativo e apetites. Os andróides são capazes de possuir os dois primeiros, mas o último não se desenvolve rápida e plenamente neles. Portanto, é possível dizer que eles não possuem alma. E é por tal motivo que, ao citar a famosa frase de Descartes, Pris nos deixa em dúvida sobre se a teoria do filósofo francês está certa ou não.



“’Quem sou eu’, continuou ele. ‘Por que sou um coringa? De onde venho e para onde vou?’” Essas questões nos são apresentadas no livro de Jostein Gaarder, O dia do Curinga. Frode, diante dessas perguntas, pergunta ao Curinga como ele reagiria se soubesse que Frode o havia criado. O curinga diz: “Nesse caso eu não teria escolha, caro Mestre. Eu teria de tentar matá-lo para recuperar minha dignidade”. O mesmo acontece em Blade Runner quando Roy vai até Tyrell, seu criador, para conversar com ele. O Replicante faz de tudo para poder viver mais do que seu prazo de vida, e quando vê que isso não é possível, mata Tyrell para recuperar sua dignidade. È incrível observar o modo como foi decorado o quarto do criador: parece um santuário, um templo cheio de velas. Ao chegar ao local, Roy tenta agradar ou bajular Tyrell, inclusive o chamando de Pai, mas como sua paciência se esgota, ele trai seu “deus” com um beijo e o mata, curiosamente, pelos olhos. Diz-se que os olhos são as janelas da alma, então, assim como no teste Voight-Kampff, pode-se saber o que a pessoa verdadeiramente é pelos seus olhos. Quando Roy assassina seu pai ele pode estar simbolizando o fato de que agora ele tomou todo o poder do deus – pela alma – e tomou seu lugar. E também pode simbolizar a idéia egípcia do significado dos olhos, em que um representa poder e o outro emoções. Como Roy enfia seus dedos nos dois olhos de Tyrell, isso mostra que ele aniquilou por completo o poder do mais poderoso dos homens.

Quando o Replicante líder vai embora, no elevador uma luz é incidida sobre ele e temos a impressão de que agora Roy está ainda mais poderoso, parecendo Lúcifer – o anjo da luz. Ele passa então a ter então uma postura mais impotente.

É curioso ver a Replicante Pris se preparando para a sua luta com Deckard. Ela se maquia de forma que seu rosto fica branco e suas bochechas azuis, a deixando com uma aparência de boneca de porcelana. Pris sabia que teria que lutar com o caçador de andróides e que poderia morrer, e escolhe ser “aposentada” do seu verdadeiro jeito: uma boneca. A Replicante fez jus à teoria de que na hora da morte os indivíduos tendem a se apresentar na sua real essência. E sua morte também foi extremamente bem feita. Na verdade, esse filme possui as melhores mortes as quais eu já assisti, evidenciando a habilidade de Ridley Scott nesse filme.

Mas a melhor parte dessa obra-prima é a batalha final, entre Roy e Deckard. O Replicante líder toma uma postura quase histérica, mudando sua voz, como se estivesse, de alguma forma, louco. Se Roy sabia que na verdade Rick é um andróide, ele (Roy) chega a ser irônico ao dizer frases como “você deveria ser o HOMEM bom” e “HOMEnzinho”, provocando e testando o caçador de andróides. E ficando seminu e uivando como um lobo, predador, passa a mensagem para Deckard de que agora a caça virou o caçador.

Todos os detalhes no cenário da luta entre os dois fazem grande diferença na estética e na interpretação do contexto. Quando Roy percebe que está morrendo e sua mão está atrofiando, ele crava um prego nela para que ela permaneça útil. Quando ele e Deckard estão no telhado e Roy decide salvar aquele que tentava matá-lo, o Replicante também segura em uma das mãos um pomba branca. Ao cruzar seus braços e ser iluminado por uma luz branca, ele se torna em uma figura divina, com a pomba representando o Espírito Santo; os cravos, Jesus; e ele mesmo o deus-pai. Inclusive é possível ouvir sinos batendo, lembrando de uma igreja [ou então de que agora “chegou a hora” – apenas um complemento]. O que é muito cabível já que agora ele está mais bondoso. No momento em que Deckard vai cair do prédio, Roy o segura com a mão que está com o prego, simbolizando Jesus salvando.



Não temos provas de que o andróide Nexus 6 sabia da verdadeira identidade de Deck, até porque no seu discurso Roy diz: “vi coisas que vocês pessoas não acreditariam”, ou seja, chamando Deckard de humano. E é também no seu discurso final que temos a última referência, mesmo que pequena, a Descartes: o que Roy fala imediatamente antes de ser “desligado” é: “hora de morrer”. Que foi a mesma frase dita pelo filósofo francês antes de sua morte: “E agora minha alma, é hora de morrer”. O que é, no mínimo, interessante. Roy também demonstra como depois de ter parado de viver com medo, pois agora está ciente de seu inevitável fim, ele se libertou e passou a viver verdadeiramente. Inclusive com verdadeiras emoções.

Assim como foi explicado a Deckard no início do filme, perto da morte os Replicantes desenvolveriam quase por completo suas emoções. E Roy, vendo sua companheira Pris morta no chão, chora de verdade, diferente de quando ele finge ao dar as notícias sobre Leon. E chora também depois de salvar Rick, tanto que suas lágrimas se perdem na chuva. E se um indivíduo está em sua “essência” logo antes de morrer, Roy era, no fundo, um andróide diferente, sentimental. No momento em que ele finalmente morre, sua mão se abre e aquela pomba branca sai voando para o céu. Isso pode ser interpretado como um sinal de que, afinal de contas, Roy tem uma alma, já que a pomba simboliza não só o Espírito Santo como também o espírito humano.

Como já mencionei, Gaff é um dos personagens mais interessantes. No final da batalha ele aparece e diz a Deckard que ele fez um trabalho de HOMEM, ou seja, um trabalho bom. Se Gaff sabia que Rick era um andróide, ele também poderia o estar provocando. E Gaff ainda deixa mais uma marca antes do final do filme: um origami de um unicórnio. Nesta situação o que importa não é o significado do unicórnio, mas sim nos lembrarmos do sonho que Deckard teve enquanto sentado no piano. Se Gaff deixou um unicórnio, isso mostra que ele sabia do sonho que Rick teve em que um unicórnio aparece correndo. Retomando que as memórias dos andróides são implantadas e que os sonhos são feitos em boa parte de lembranças, deduzimos que Deckard teve suas memórias inseridas nele e que Gaff teve acesso a elas, pois ele sabia do sonho. E o próprio Rick parecia já saber quem ele realmente era, pois, ao ver o origami, ele não parece surpreso, e sim como se ele recebesse uma confirmação de algo que ele já tinha conhecimento.

Mas Gaff ainda tem uma importância maior. Em vários momentos ele aparece nos lugares em que Deckard está. No início, quando ele o leva para a delegacia, quando Zhora e Roy morrem, entre outras. Durante a morte da Replicante Zhora, Gaff aparece no fundo a observando. Isso nos leva a uma idéia: Gaff poderia representar a alma que Deckard nunca teve. Ele demonstra as emoções do andróide e sempre o está observando.

O objetivo do filme certamente foi atingido, pois nos leva a fazer uma profunda análise ontológica. O que nos faz pensar que nós somos humanos? O que nos dá essa certeza? Se for o fato de termos alma, então como provamos que temos essa alma? Não pode ser o simples fato de pensar, pois os andróides e até mesmo HAL 9000 pensam, e isso não significa que eles possuem alma. Mas acredito que o que nos mostra que nós temos alma é o simples fato de a termos, e nós, apenas nós mesmos sabermos disso. Pois é possível afirmar com certeza que Roy demonstrou muito mais ter alma do que muitos humanos que viviam naquela época e em nosso tempo. Ter alma é viver plenamente e estar completamente ciente disso. Pois se não o fizermos, viveremos com medo e seremos escravos de nossos próprios sentimentos.



[1] Princípios da Filosofia, 1644


por Mr. Raccoon

4 comentários:

  1. Gaff quando deixou seu origami no fim do filme, sabia onde Rachel estava e poderia tê-la matado ou informado a alguém mas não o fez. Achei isso um importante fato para complementar.

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  2. Acredito que seja o olho esquerdo pois em outro filme de Ridley (Alien Covenant) logo no Inicio é possível ver claramente um enquadramento muito similar a do filme Blade runner usando o olho esquerdo.

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